TST reconhece direito de vítimas de Brumadinho a indenização por dano-morte

Para a 3ª Turma da Corte, a aquisição do direito é automática e simultânea à ocorrência do acidente que causou a morte

Redação com TST


Bombeiros trabalhando após o rompimento da barragem em Brumadinho (Foto: Agência Brasil)

A Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho julgou, em 20/6, três casos envolvendo o chamado dano-morte de vítimas fatais do rompimento da barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), em janeiro de 2019. O termo diz respeito aos danos experimentados pelas próprias pessoas falecidas, que sofreram os resultados diretos do acidente de trabalho.

Direito de existir

No primeiro caso, o colegiado rejeitou recurso da Vale S.A. e reconheceu a existência do dano-morte e do dever de indenizar. Trata-se de ação civil pública proposta pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Extração de Ferro e Metais Básicos de Brumadinho e Região (Metabase Brumadinho) em nome de 131 vítimas fatais do acidente, ocorrido em janeiro de 2019. A pretensão era obter indenização pelos danos sofridos por elas até a inconsciência e a morte. Segundo o sindicato, o dano decorre da exposição direta ao sofrimento e à aflição dos momentos anteriores ao óbito, resultando na perda do direito de existir.

Dano intransmissível

A Vale, em sua defesa, argumentou, entre outros pontos, que o direito brasileiro e o do trabalho negam a existência do “dano-morte” e que, de acordo com o Código Civil (artigo 6º), “a existência da pessoa natural termina com a morte”. Com isso, não haveria direito à indenização do morto pela própria morte e esse dano não poderia ser transmitido.

Ataque à vida

O juízo da 5ª Vara do Trabalho de Betim (MG) condenou a Vale a pagar R$ 1 milhão por vítima aos espólios ou aos herdeiros das pessoas representadas pelo sindicato. Segundo a sentença, o dano-morte decorre do ataque injusto e ilícito à vida, e sua gravidade extrapola o campo civil, alcançando a condição de crime. A decisão foi mantida pela Quarta Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região.

Prevenção

No recurso de revista, a empresa apresentou diversas questões preliminares analisadas pela Terceira Turma. Uma delas foi o pedido de reconhecimento da conexão entre esse processo e outro que tramita na Quarta Turma, para que fossem julgados em conjunto (prevenção), pois tratariam do mesmo tema.

Para o relator, ministro José Roberto Freire Pimenta, a prevenção, no TST, pressupõe a identidade de partes, de causa e de pedido, o que não há no caso. A seu ver, o pedido é descabido e levaria ao “absurdo” de que todos os processos envolvendo a mesma empresa e com alguma similaridade jurídica a ser deliberada fossem enviados para o relator do primeiro processo distribuído.

O ministro lembrou, ainda, que o primeiro processo apontado pela Vale já foi julgado monocraticamente no âmbito na Quarta Turma. Com isso, não estaria atendida a finalidade do instituto processual da conexão, que é a de possibilitar o julgamento conjunto e simultâneo dos dois processos pelo mesmo juízo prevento.

Acordos

Outro argumento da empresa foi a existência de acordos firmados em ação civil pública do Ministério Público do Trabalho (MPT). Segundo o relator, contudo, essa ação tinha pedido e objeto diversos, , e a questão do dano-morte não foi tratada. Seu objetivo era o pagamento de indenizações aos familiares das vítimas pelo dano moral reflexo ou em ricochete a elas causado, tanto que levaram em conta o grau de parentesco.

No mesmo sentido, o ministro rejeitou a pretensão de excluir da ação as pessoas em nome das quais já tenham sido feitas transações individuais, com cláusulas de quitação ampla e geral. Ele explicou que eventuais fatos que impeçam, modifiquem ou extingam o direito reconhecido na ação do sindicato devem ser verificados na fase de execução. “O cumprimento do direito declarado nesta ação para cada trabalhador dependerá do exame das particularidades afetas a cada um deles”, ressaltou.

Direito à vida

Em relação ao mérito da condenação, a Vale insistiu no argumento da inexistência e da intransmissibilidade do direito ao dano moral para a vítima em razão de sua própria morte. Sobre esse ponto, o relator lembrou que o direito à vida está consagrado em inúmeros diplomas normativos, entre eles a Constituição Federal, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica.

Cláusula de abertura

A proteção judicial efetiva e a responsabilização do infrator pela ofensa a esse direito estão previstas na Constituição e na legislação infraconstitucional, que adotam o princípio da reparação integral do dano. O ministro José Roberto Pimenta lembrou que, em caso de homicídio, além das indenizações rotineiramente devidas, o artigo 948 do Código Civil contém, na expressão “sem excluir outras reparações”, uma cláusula de abertura que permite fixação de outras indenizações advindas do evento morte.

Direito automático

Por outro lado, o ministro observou que, no momento da lesão, o titular do direito à vida estava vivo e, por isso mesmo, teve violado o seu direito. Com isso, surge o direito à pretensão de reparação. “Ou seja, a aquisição do direito decorrente do dano-morte é automática e simultânea à ocorrência do fato danoso, independente, inclusive, do estado anímico ou consciência do seu titular no momento do evento fatídico”, explicou.

Prêmio ao agressor

Por fim, o ministro destacou que permitir que o agressor que tenha ocasionado a morte de alguém não responda por seu ato ilícito significa premiá-lo ou mesmo estimular a inobservância das normas de segurança e medicina do trabalho. Nesse caso, a sanção para quem impõe o fim prematuro a uma vida seria menor do que a imposta a quem ofende a integridade física de alguém sem, no entanto, causar-lhe a morte.

Situação absurda

Para o relator, se o entendimento sustentado pela Vale prevalecesse, dele resultaria uma situação absurda: o somatório de todas as indenizações devidas, a título do dano diretamente causado a essas vítimas fatais (o denominado “dano-morte”) e, também, a título dos danos morais reflexos ou em ricochete devidos aos familiares seria menor do que aquele que a empresa teria que arcar nos casos em que as vítimas tivessem sobrevivido, mas também houvesse danos reflexos de familiares.

Discussão irrelevante

Ainda para o relator, o direito à indenização pelo dano-morte é autônomo e distinto dos prejuízos sofridos pelos herdeiros ou familiares da vítima e independe de a morte ter sido ou não instantânea. “A proteção jurídica se refere à existência da pessoa humana, e as discussões sobre a ocorrência ou não de eventual sofrimento anterior ao falecimento das vítimas são irrelevantes”.

Valor da indenização

No mesmo processo, a Turma também rejeitou agravo da Vale contra o valor da indenização, ao mesmo tempo em que também desproveu agravo de instrumento do sindicato de trabalhadores, que pretendia aumentá-lo para  R$ 3 milhões por vítima fatal.

Tabelamento

 empresa alegava que deveriam ser observados os limites fixados no artigo 223-G da CLT, introduzido pela Reforma Trabalhista, que utiliza como parâmetro para a indenização o último salário contratual do empregado. Outras alegações eram as de que o valor de R$ 1 milhão por vítima fatal estava muito além do adotado pela Justiça do Trabalho em casos envolvendo morte de trabalhadores e que os acordos já celebrados após o acidente deveriam ser considerados na fixação do montante.

STF

Para o colegiado, porém, os limites fixados na CLT têm caráter facultativo e meramente exemplificativo, e não absoluto. O dispositivo deve ser interpretado conforme a Constituição quando as circunstâncias do caso concreto e os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da igualdade justificam a quantificação da condenação em valores superiores. Esse entendimento foi recentemente confirmado pelo Supremo Tribunal Federal em Ações Diretas de Constitucionalidade sobre o artigo 223-G da CLT, introduzido pela Reforma Trabalhista, em acórdão de relatoria do Ministro Gilmar Mendes.

Maior acidente de trabalho

Nesse sentido, o caso de Brumadinho não pode se comparar a outros casos que consideraram o contexto de cada situação individualmente. “O rompimento da barragem da mina Córrego do Feijão foi, desafortunadamente, o maior acidente de trabalho da história do Brasil, que acarretou o falecimento de centenas de trabalhadores e cujos efeitos deletérios impactaram toda a sociedade, acarretando danos ambientais, incluindo laborais e de grandes proporções”, afirmou o relator. “É inviável, portanto, utilizar-se como parâmetro os valores arbitrados a mesmo título em casos pontuais ou individuais de falecimento de empregados em acidentes de trabalho”. Por outro lado, o valor fixado pela sentença e mantido pelo TRT foi considerado razoável e proporcional ao ocorrido.

Espólio

Nas duas outras ações julgadas na mesma sessão, a Terceira Turma reconheceu a legitimidade do espólio de trabalhadores que também morreram em Brumadinho para pleitear indenização pelo dano decorrente de sua morte. O TRT havia extinguido as ações, por considerar o espólio parte ilegítima.

Natureza patrimonial

O relator de um dos recursos, ministro Mauricio Godinho Delgado, explicou que o espólio é o conjunto de bens que integra o patrimônio deixado pela pessoa falecida e que será partilhado, no inventário, entre os herdeiros, representados em juízo pelo inventariante. E, de acordo com o Código Civil (artigo 943), “o direito de exigir reparação e a obrigação de prestá-la transmitem-se com a herança". De acordo com o ministro, apesar de os direitos da personalidade serem intransmissíveis, a natureza da ação de indenização é patrimonial e, por isso, o espólio é parte legítima para ajuizá-la.

O relator do outro recurso, ministro Alberto Balazeiro, lembrou que a Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SDI-1), responsável pela uniformização da jurisprudência do TST, tem jurisprudência firme no sentido da legitimidade de herdeiros e sucessores para pleitear reparação dos “danos em ricochete”, ou indiretos, o que afastaria a legitimidade do espólio. Contudo, a questão do dano-morte trata da reparação de danos sofridos pela vítima em razão da perda da própria vida.

Balazeiro lembrou ainda que, em decisão recente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que se trata de direito autônomo do falecido, cujo direito de ação, de caráter patrimonial, se transfere aos herdeiros.

Com a decisão, os dois processos retornarão ao TRT, para que prossiga o julgamento dos pedidos.